José Mário Branco - Queixa das Almas Jovens Censuradas [1971-1982]

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  1. QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS





    Dão-nos um lírio e um canivete

    e uma alma para ir à escola

    mais um letreiro que promete

    raízes, hastes e corola.



    Dão-nos um mapa imaginário

    que tem a forma de uma cidade

    mais um relógio e um calendário

    onde não vem a nossa idade.



    Dão-nos a honra de manequim

    para dar corda à nossa ausência.

    Dão-nos um prémio de ser assim

    sem pecado e sem inocência.



    Dão-nos um barco e um chapéu

    para tirarmos o retrato.

    Dão-nos bilhetes para o céu

    levado à cena num teatro.



    Penteiam-nos os crânios ermos

    com as cabeleiras das avós

    para jamais nos parecermos

    connosco quando estamos sós.



    Dão-nos um bolo que é a história

    da nossa história sem enredo

    e não nos soa na memória

    outra palavra que o medo.



    Temos fantasmas tão educados

    que adormecemos no seu ombro

    somos vazios despovoados

    de personagens de assombro.



    Dão-nos a capa do evangelho

    e um pacote de tabaco.

    Dão-nos um pente e um espelho

    pra pentearmos um macaco.



    Dão-nos um cravo preso à cabeça

    e uma cabeça presa à cintura

    para que o corpo não pareça

    a forma da alma que o procura.



    Dão-nos um esquife feito de ferro

    com embutidos de diamante

    para organizar já o enterro

    do nosso corpo mais adiante.



    Dão-nos um nome e um jornal,

    um avião e um violino.

    Mas não nos dão o animal

    que espeta os cornos no destino.



    Dão-nos marujos de papelão

    com carimbo no passaporte.

    Por isso a nossa dimensão

    não é a vida. Nem é a morte.






    Natália Correia, Dimensão Encontrada, 1957

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