março de 2007 a março de 2021.
14 anos de tanta e tão boa música. agora, é preciso fazer coisas novas.

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De Grândola a Lisboa, 50 anos do rufar dos passos

publicado em A Mensagem de Lisboa 12.03.21

Marvin Gaye passou boa parte do ano de 1970 a tentar convencer a sua editora, a poderosa mas conservadora Motown, a lançar uma canção pacifista e que proclamava o poder do amor para resolver os problemas do mundo. Visto à distância, parece anedota. Mas então isso não tinha ficado resolvido lá atrás, na geração hippie e nos três dias de Woodstock? Não tinha. Isso era noutro universo, o dos brancos, vedado aos pretos americanos. Na casa dos pretos, a Motown, não queriam chatices e a ordem era continuar a dançar ao som do bada-badum, de miúdas parvas apaixonadas, desprezadas, mas finalmente sempre fiéis. Só que lá fora o mundo estava agreste e nem era preciso entrar pelos pântanos do Vietname. Do outro lado da rua, a polícia branca praticava o seu desporto favorito de atirar ao preto, o preto tratava a preta pela mesma assimetria e o ambiente geral negava o quadro de peace & love de que o marketing já fazia marca. 
“What´s Goin On” (Que Se Passa Aqui), lançada em janeiro de 1971, faz agora 50 anos, rompia com a tradição um tanto alienada da música negra comercial norte-americana. Mas fazia mais, a canção e especialmente o álbum que sairia uns meses depois, ao convocar para um território de canções de absorção rápida a complexidade e a subtileza do jazz e da clássica. Foi um sucesso, moderadamente influente para a época. Como muitas vezes acontece, só o tempo confere densidade a estas coisas e, na lista dos melhores discos de sempre da Rolling Stone, “What´s Goin On” levou meio século a subir do fundo da tabela até topo. Mas chegou mesmo ao topo.
Estão a ouvir a canção? Aquele início com uma conversa animada entre jogadores de futebol americano? Estavam muito na moda, há 50 anos, estas brincadeiras de estúdio, aproveitando as enormes potencialidades que a tecnologia começava a oferecer. E foi aproveitando essas novas maravilhas da técnica que José Mário Branco se lembrou de espalhar uns microfones pela gravilha dos Strawberry Studios, em Herouville (França), para captar o arrastar de pés que constitui hoje, a seguir ao trinar das guitarras, a segunda sonoridade musical portuguesa mais reconhecida em todo o mundo, o compasso de “Grândola Vila Morena”. Abria a lado B de “Cantigas do Maio”, de José Afonso, que também faz este ano 50 anos, mas que se por heresia ou tenra idade nunca ouviram, esqueçam – não está à venda, não está no Spotify, não existe. Na verdade, está tão proscrito como quando foi lançado. Esse disco, cimeiro de todos os discos portugueses, encontra-se envolto, como toda a obra de José Afonso, numa inacreditável disputa de direitos de autor, em vez de estar agora a ser reeditado, com gravações restauradas, trechos nunca antes editados, como acontece lá fora, ou, vá lá, com acontece por cá com a exceção Amália. Como a data oficial de lançamento coincide com o Natal, resta-nos a esperança de que quem tem poder para resolver isto nos queira rechear o sapatinho...
Felizmente, os restantes discos de que se fez essa extraordinária colheita de 71 estão todos aí, disponíveis para comemoração. Desde logo, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, que também ele começa com sons captados na vida real por José Mário Branco, no caso, o bulício ferroviário da parisiense Gare de Austerlitz, para depois nos revelar, não apenas um dos maiores autores/compositores do século XX português, mas também um encenador de sons de excelência. É ainda o mesmo José Mário o mago por detrás do disco de estreia de Sérgio Godinho, “Sobreviventes”, do qual começa por sair o EP “Romance De Um Dia Na Estrada”, em 1971, e depois, num jogo do gato e do rato de proibições, o álbum, já no ano seguinte. Ainda desse ano são também o disco maior de Adriano Correia de Oliveira, “Gente de Aqui e de Agora”, e “Movimento Perpétuo”, a obra de afirmação de Carlos Paredes.
Três anos e mais alguns discos volvidos, muitas daquelas canções, gravadas e viajadas por tantas partes do mundo e do país, confluíram no Coliseu dos Recreios, no I Encontro da Canção Portuguesa, que juntou Zeca, Ary, Tordo, Paredes, Letria, Adriano... Os muitos PIDES presentes da sala não perceberam, ou não quiserem perceber, e esqueceram-se de avisar a Censura para cortar dos jornais vespertinos do dia seguinte a menção à “Grândola”, entoada, por duas vezes, por uma sala de pé, com as luzes de gala acesas.
Faltavam 27 dias para o 25 de abril e para que todas as canções se soltassem.
Marvin Gaye teve menos sorte. Acabou baleado pelo pai, poucos anos depois, no meio de uma disputa familiar. Falhou-lhe a compreensão de que falava em “What´s Goin On”.

O mundo e a aldeia

publicado no Jornal Torrejano, em setembro de 2019, num suplemento do 25.º aniversário


Há pouco mais de duas décadas, o mundo dos negócios e dos media inventou uma palavra: “glocal”. Trata-se da fusão das expressões “global” e “local” e, com esse novo termo, pretendia-se descrever todo um novo mundo que estava a nascer, à boleia da globalização, da sociedade da informação e da possibilidade que hoje temos de fazer circular mercadorias e ideias, à velocidade da luz, à volta do planeta. É tão possível comprar figos secos de Torres Novas numa loja gourmet de Nova Iorque, como ler aqui a New Yorker, uma das mais prestigiadas revistas a nível mundial, no exato momento em que ela é publicada na cidade de origem.
Também nas últimas décadas, a extraordinária disseminação e a democratização dos meios de produção jornalísticos – hoje em dia, qualquer um pode fazer rádio, notícias online e mesmo televisão, muitas vezes a partir de um simples telemóvel –, trouxeram novos desafios e oportunidades aos media.
Um bom exemplo prático dessas novas realidades são as redes sociais, em especial a mais afinada de todas elas, o Facebook. Uma rede à escala global, na qual sentimos fazer parte do mundo, e chegamos mesmo a pensar que influenciamos o mundo, mas na qual, na verdade, tudo se passa numa relação da mais pura proximidade – os nossos amigos, o nosso bairro, os nossos colegas de trabalho, os do mesmo clube, partido ou apenas gosto.
Os últimos anos foram também de profunda transformação nos media a que agora chamamos de tradicionais. A produção de notícias originais e de qualidade (passe a simplificação) tornou-se mais dispendiosa, porque, sendo certo que os custos baixaram globalmente, a verdade é que as receitas baixaram muito mais, pondo mesmo em causa todo o modelo empresarial do sector.
A esse panorama de crise, que atinge especialmente os media de largo espectro (jornais nacionais, televisões generalistas, rádio), escapam dois sectores bem distintos: as publicações especializadas, sejam elas revistas ou sites, que se renovam e sucedem conforme as modas; e os media locais.
Para um real conhecimento da realidade portuguesa faltam-nos estatísticas fidedignas que permitam comparar, por exemplo, quantos exemplares de jornais locais e regionais se vendem hoje, comparativamente a há duas ou três décadas; quantas rádios verdadeiramente locais e regionais existem e quais as sua audiências; qual o comportamento dos sites e de algumas experiências de televisão local via net; e, finalmente, qual a saúde financeira e as perspectivas de sustentabilidade de tudo isso.
Estaremos muito longe dos índices de leitura e de consumo de informação desejáveis para uma democracia, é certo, mas ao longo do país vão singrando e surgindo projectos que nos alimentam a esperança, mesmo que a sua distribuição no território acompanhe os desequilíbrios do costume.
Os media locais e regionais dispõem de um conhecimento pormenorizado das gentes, seus problemas e anseios, que constitui um capital indispensável para quem faz informação. E – convenhamos – beneficiam mesmo da desatenção, ou mesmo desprezo, com que a generalidade dos media nacionais olham para grande parte do País, que apenas existe quando palco de tragédia, ou como mera curiosidade folclórica.
Dispõem – talvez segredo bem guardado, mesmo para os próprios – das mesmas condições e facilidades técnicas dos da primeira liga, haja formação adequada e criatividade para desenvolver esse potencial.
É verdade que as condições de mercado não são as melhores, especialmente as económico-financeiras, sendo o tema do financiamento crucial para que não se criem relações de dependência ou promiscuidade que ponham em causa a nobre arte de informar. E também é verdade que as taxas de analfabetismo, ou distanciamento da cultura e da informação, ainda serão mais elevadas nos territórios de baixa densidade do que nos grandes centros.
Mas, pesados prós e contras, os media locais e regionais estão particularmente bem posicionados para o tal ângulo “glocal” para o qual as condições estão maduras. Malefícios – e não são poucos -, à parte, o Facebook é boa fonte de inspiração para estes dias. Saibam aqueles que lidam com os media locais retirar dali os ensinamentos fundamentais, não obviamente ao nível do conteúdo, mas antes do nível de funcionamento e de interação entre o muito próximo (local) e o que interessa a todos (global). 
Grandes incêndios na Amazónia, inundações na Europa ou o degelo no Ártico, isto para mencionar apenas temas de carácter ecológico, têm consequências na vida prática de cada um de nós, em qualquer parte do mundo. E é precisamente esse campo que está disponível para os media locais, cujo papel já não é apenas o de noticiar as pequenas e grandes tragédias e feitos da rua ou da aldeia, mas antes ter também a ambição de fazer a ponte com o mundo e trazer o mundo à rua ou à aldeia. Porque o conceito de proximidade já não é hoje de ordem meramente geográfica.

procurar nas coisas o que as coisas podem ter de belo. é o que gosto de fazer.
e resisto cada vez mais a todas as outras coisas.
o que as coisas têm de belo é quase sempre algo de muito frágil.
ao contrário do que se pensa, não é nada difícil encontrar as coisas belas em todas as coisas.
aquela linha que o arquitecto sonhou e que os pedreiros construíram e a que nunca mais ninguém ligou.
as três notas de piano, que já sabes estarem ali, mas que te emocionam sempre que passas por aquela canção.
o gato indiferente ao teu olhar meigo que se senta ao colo porque a isso tem direito, ora essa.
as composições de mulheres e velas e crianças e céu do sorolla nos mares cantábricos.
justificar o texto no word na esperança de que o grão de poesia em falta se materialize no ecrã.
o ar fresco daqueles dias em que te levantas cedo e dizes para contigo que aquela é a hora de que mais gostas, como se o planeta tivesse só para ti oxigénio novo e luz nova todos os dias.
a simplicidade da pescada fresca cozida, com os legumes, o ovo e o fio de azeite.
as revistas, sempre as revistas, o prazer de folhear, raramente ler, perceber só com o olhar.
a saudade, não aquela dor do que se perdeu, para sempre se perdeu, mas aquela saudade das coisas que sabemos garantidas, pelas quais podemos esperar, porque sabemos que hão-de acabar em abraço.
aquela estrada, nunca a mesma, a leve sensação de andar perdido, condução serena e veloz, veloz e serena, tudo é alentejo, mesmo quando já não o é.
o livro de poesia que abres ao acaso e te fala da mão que procura e acaricia a pele, o sexo, o amor.
a música dos beach boys.
e o travo do macdonalds numa madrugada de verão?
o sorriso de quando chegas, os olhos que procuram os meus.

VPV no DN


De Vasco Pulido Valente, uma pequena história, que certamente não fará parte de qualquer biografia autorizada. Início dos anos 90, Diário de Notícias, acabado de regressar ao setor privado, a definhar face ao jovem azougado e acutilante Público, de Vicente Jorge Silva, e ao inevitável e crescente CM.
No redesenho total (redação, grafismo, estilo, tudo) que Mário Bettencourt Resendes empreendeu - e que levaria o jornal à liderança na segunda metade da década -, havia um suplemento de Cultura, assim, com C maiúsculo. Que tinha editores e redação residentes, mas que na prática, em várias das suas edições (não todas...), era "editado" por VPV.
 Acontecia assim: o Mário ia almoçar com VPV, discutiam umas coisas, e depois, com aquelas artes diplomáticas que lhe eram características, lá arranjava maneira de a redação acreditar que estava a editar, ou seja, a gerar e gerir ideias, quando na realidade quem editava era o VPV. Lembro-me, por exemplo, de uma célebre edição em que VPV ajustou contas com outros que, como ele, ocuparam a pasta governamental da Cultura.

*
Na década seguinte, VPV ocupou uma coluna da última página, em alguns dias da semana, e eram épicos (até porque atrasavam o jornal...) os debates entre VPV e alguns revisores acerca de uma vírgula, ou a exatidão de uma expressão. Foi nessa altura que fizemos uma manchete de página inteira com o título "Sopram ventos de loucura", retirado da tal crónica de VPV, e que usámos para encabeçar uma lista de maluqueiras de alto calibre que assolavam o planeta. Ainda lembro os olhos de miúdo traquina e divertido do Mário, a explicar a ideia, e a alegria do José Maria Ribeirinho, por ter a oportunidade de brincar com mais uma primeira. Uma manchete feita a partir de uma crónica...

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 Há também uma ou outra coisita em que VPV fez muito mal ao DN. Mas isso não vão ler hoje aqui.

A minha despedida de José Mário Branco



Eu sei que hoje é o dia de partilhar a Queixa, a Inquietação, ou mesmo o FMI.
Partilho o início da Canção dos Despedidos:
*
Somos explorados no trabalho, e não só
Também somos o lixo
Lixo na tê-vê, quem lá está e quem vê
Lixo no jornal, voz do seu capital
Estamos entregues aos bichos
E o lixo produz mais lixo
*
A canção, de 2004, integra o disco Canções Escolhidas, de 2018, que - parece-me - José Mário Branco quis que fosse o seu testamento. Estão lá as mais conhecidas e uns dois ou três murros no estômago, como este. Para as novas e para as futuras gerações.
Só há um José Mário Branco, Que vai dos fabulosos discos do Zeca ao renascimento do fado com Camané. E que queria um mundo novo e bom a cada canção. Um José Mário Branco inteiro, único, radical.
*
Lembro aquele fim de tarde de 6 de junho de 2018, na Fnac do Chiado, para apresentar Inéditos 1967-1999, em conversa com Nuno Pacheco.
Uma hora e tal de uma tremenda lição de música e política e vida. Um nó na garganta pela sensação de que aquela era apenas mais uma peça de uma tournée de despedida - a reedição integral dos discos, o disco de inéditos, a colectânea das Canções Escolhidas, entrevistas de vida, como de costume, sem rodeios, com a sinceridade toda do mundo. Partir em paz, missão cumprida. Não desistam, porra.
*
Guardo apertados os abraços em letra linda, linda, desse 6 de junho.




How Do You Keep The Music Playing - não é uma canção sobre a música, mas sobre o amor. Como (quase) todas as de Sinatra. Sobre o amor e a vida, enfim.
Escolhi 3 mãos cheias das canções de que mais gosto dele. E essa é, não a minha prenda de Natal, mas a companhia que vos ofereço para 2019.

I've been told and I believe
That life is meant for livin'
And even when my chips are low
There's still some left for givin'

I've been many places
Maybe not as far as you
So I think I'll stay awhile
And see if some dreams come true



croire aux cieux croire aux dieux
même quand tout nous semble odieux
que notre cœur est mis à sang et à feu


tivesse eu juízo, ter-me-ia estreado este ano em paredes de coura. pelo menos, por marlon williams, se outras coisas não houvesse.
não será, também não sou a rolling stone para o dizer, o futuro do rock. mas é o tipo de música que me faz parar tudo e repetir até mais não.
faz-me lembrar - a atitude, a voz, o tema - outro herói muito privado, íntimo até - richard hawley, ao qual não tenho dedicado ultimamente a atenção devida.
marlon, neozelandês a fazer música absolutamente americana. ao segundo disco, uma digressão em sangue por uma paixão perdida. lindo, claro.




era sábado e havia uma manif da inter.