Dar o eu a Eusébio

Imagem de uma sessão publicitária para o sabonete Lifebuoy.
Foto de Alberto Peres, publicada no Facebook pelo filho, Bruno Peres



































No último congresso de escritores a que assisti, já não sei em que desabotoada estância mediterrânica, um romancista búlgaro que comigo partilhava o ascensor directo à sala das sessões, exclamou, ao saber que eu era português:
- Portugal?... Eusébio!
E sorria tão candidamente que eu achei inútil perguntar.lhe pelo iogurte ou - o que seria mais engraçado - mostrar-lhe que conhecia o poeta nacional búlgaro Christo Botev. De facto é reacção muito do escritor invejar a popularidade do futebolista. Mas, afinal, porquê? O futebol é um desporto de massas; a literatura nunca o foi. Quando chegámos à sala das sessões, eu e o búlgaro, simulando chutos e esquivas, ríamos e dizíamos um ao outro, a escandir bem as sílabas, «Eu-sé-bi-o! Eu-sé-bi-o», como se este nome próprio fosse a palavra de passe para um bom convívio.
Os índices de popularidade de uma estrela de futebol e de um bom escritor não podem ter comparação. (Vocês já pensaram o que seria um bom escritor com a popularidade de uma estrela de futebol?...). Não vale a pena, assim, que o-escritor-nem-sequer-bom passe a vida a dizer ao frustrado do filho: «Ponha os olhos no seu pai... Vá mas é para futebolista!», para insinuar que há incompatibilidade «histórica» entre génio e eusébio, entre talento e provento.
Este preconceito contra o futebol, que enraíza na verificação (justa) de que os estados autoritários protegem as artes do chuto até elas se atrofiarem em espectáculo-canalizador-de-energias em política-da-bola, etc., não relevará, igualmente, de um preconceito aristocratizante contra as actividades braçais, neste caso pernais? Um pouquinho, acho que sim.

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Uma coisa me consola, Eusébio. É que não fui eu quem cobriu Você2 de adjectivos, de ápodos, de cognomes mais ou menos imaginosos. Não fui eu quem disse que Você2 era a pantera, o príncipe, o bota de oiro, o relâmpago negro, o coice para a frente, o astropata. Também não fui eu quem disse que o seu nome era Eusébio.

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Outra coisa me consola, Eusébio. É saber que a imensa popularidade que acompanha o seu nome não deitou a perder o proprietário desse nome. Você é naturalmente modesto e assim se tem mantido. Já não garanto que com Rei Pelé se passe3 o mesmo. Ele foi visitar o Presidente em Washington, ofereceu-lhe uma bola autografada, não sei se ajuda moral nos maus momentos que o Pacificador da Indochina tem vindo a passar portas e microfones adentro4, enfim, multiplicou-se em gestos em relação aos quais o menos que se pode dizer é que tiveram muito de autopromoção. E com o Kissinger em Moscovo! Você, Eusébio, não. Sabe os terrenos que pisa e recusa-se a perder a tineta!

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Por falar em terrenos, como vão os «rectângulos», o «tutu», o «onassis»? Consta-me que Você é prudente, que tem sabido acautelar o seu futuro. Faz muito bem, pantera! Passe à história, mas leve bagagem. Olhe que a memória das gentes é cruel!

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Dar o Eu a Eusébio, que pretensão! Derive, derive e vire e atire sem parança, Eusébio, seu genial tragalhadanças!

Alexandre O'Neill, in Uma Coisa em Forma de Assim, um livro que, vá lá saber-se porquê, não tenho sempre comigo no bolso interior esquerdo da gabardina.

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